Friday 3 July 2015

Você

Você é preto quando é parado pelo policial preto, negro, branco, ou pardo, depende da situação, na rua por atitude suspeita, mas é negro quando compra sua camisa nova na loja cara do shopping. Você provavelmente será preto se chegar à loja mal vestido direto da praia, onde foi preto para a turista no posto nove - estava de sunga e chinelos - e assim foi encarado pela senhorinha do seu lado à espera da abertura do semáforo, que talvez tenha agarrado mais firme a bolsa.
Você normalmente é preto quando vai a um prédio a primeira vez e pode se tornar negro quando o porteiro - nordestino para quem não tem aquele sotaque, paraíba às vezes para outros portadores de sotaque, nortista quando falam sobre você a um não detentor de sotaque - descobre que você é o novo morador do apartamento que estava vago. Você é escuro, se é indefinido, se é aquele faxineiro do mesmo prédio do morador negro, onde também mora a mulata, aquela que é gostosa por definição e pode até ser de alguém.
Você é viado, com aquelas bichas suas amigas quando se joga na noitada - talvez também seja para o taxista, para o segurança da boate ou para aquele rapaz do trabalho que estranha quando você não fala da sua namorada entediante - a dele ao menos parece ser - ou não conhece o puteiro famoso onde ele, sempre que pode, gasta parte considerável do salário. 
Você pode ser bicha, se for má, velha ou caquética. Você pode ser homossexual naquele papo entre a sua mãe e a vizinha, ou no censo, e talvez tenha sido viado para seu pai, para seu irmão, para o playboy vestido de faxineira - aquele bíceps apertado naquele uniforme, hein - que te olhou feio no carnaval quando você se engalfinhava com o bofe da vez.
Daí que você pode ser viado preto quando erra o cruzamento na final do campeonato - o outro lateral também erra, mas ele nem é viado, nem preto, só tem uma mãe desfavorecida de moral condizente com a sociedade de bem que foi ao estádio no domingo. 
Você pode ser negro homossexual na descrição do boletim de ocorrência da agressão que você sofreu no fim da noite, ali perto dos Arcos da Lapa ou no Farmeganistão - e dependendo, ou da luz na sala da delegacia, ou da desatenção do escrivão, pode ser pardo ou escuro, na folha do depoimento. Você pode ser negão bicha - insira aqui a sua pré-definição dessa classificação - viado escuro - idem, embora aparentemente mais raro.
Você pode ser piranha fofa na descrição daquela piranha invejosa - aquela que pegou aquele gato - cachorro, galinha, depende da situação, do zapzap apitar ou não no dia seguinte, ou de você não vê-lo trêbado no baixo com aquela outra piranha inimiga. Você pode ser liberada sexualmente e confortável com sua libido - com culpa ou sem - para aquela sua amiga no papo dela com aquela biscate que namorava seu peguete de ontem.
Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser talvez, só não pode faltar adjetivo às frases que, sem verbos, não são frases. Mas sem adjetivos, e seu uso tão condicional, talvez melhores fossem. Boa sexta.

Tuesday 17 March 2015

Direitos Trabalhistas

Embora generalizações não sejam eficientes, algumas permitem pensar sobre recorrências no incerto, e às vezes incompreensível, presente. Uma delas diz que em todas as crises econômicas recentes, como remédio amargo e necessário, é receitada uma mudança nos parâmetros de direitos trabalhistas. 

Além de recorrente, o corte ou mudança da CLT, assim como a reforma tributária, é sempre apontado como necessário para a retomada da competitividade ou do crescimento econômico. E que, mais à frente, após a subida da íngreme ladeira do ajuste, significaria um alívio para o sacrifício executado.

Em geral, não há consensos claros sobre o que seria alterado e sobre a efetividade de medidas que mudam a relação entre empregados, patrões e governo. Mesmo o setor empresarial diverge sobre quais regras suprimir.

Um dado apontado por alguns economistas ao longo dos nossos últimos anos de bonança foi o aparentemente contraditório aumento da busca de seguro-desemprego e abono salarial, apesar do aumento do número de pessoas ocupadas.

Mais recentemente, parte da diminuição na taxa de desemprego foi creditada à saída de pessoas do mercado de trabalho. Isto porque mede-se o desemprego a partir do número de pessoas sem emprego que estão procurando por ocupação. 

Desta forma, quem opta voluntariamente por sair do mercado de trabalho não é contabilizado como desempregado. Ou seja, desemprego voluntário não aumenta a taxa de desemprego de economia, mas diminui o contingente da força de trabalho.

A saída voluntária do mercado não costuma ser benquista por quem estuda a economia. Ainda que a motivação seja o aperfeiçoamento profissional e o indivíduo retorne mais tarde mais produtivo, por algum tempo, a massa de salários e impostos derivados da atividade formal cai.

Hoje a medida de crescimento econômico usada, o PIB, capta mal ou não capta certos tipos de ocupações que não envolvem interação com o mercado de trabalho - formal ou não. Por exemplo, o dia a dia da dona de casa em seus afazeres domésticos não é contabilizado. 

Da mesma forma, um estudante ao parar de trabalhar para se aperfeiçoar não contribui diretamente para apuração dos valores do crescimento do que é produzido em um país. Muito embora, ressalte-se que, ao retornar, aquele camarada terá uma qualificação maior, que aumenta sua produtividade, crescendo, assim, sua contribuição à produção total do País.

Ao sair do mercado formal, em geral, é facultado ao trabalhador receber auxílio-desemprego durante um período. Ao mesmo tempo, ele ajuda a diminuir a massa de salários pagos na economia, o volume de riqueza que é produzido e aumenta a despesa do Governo com o pagamento de benefícios.

A queda do desemprego recente não tem a ver apenas com a saída de trabalhadores do mercado, no entanto. É visível que o aquecimento econômico dos últimos anos também redundou numa menor informalidade do emprego - que é tendência desde os anos 90. Dessa forma, mais pessoas passam a ter acesso a benefícios da CLT e mais indivíduos passaram a contribuir para a manutenção da rede de proteção do trabalhador, aumentando o número de contribuições.

A questão mais clara é que, embora o número de pessoas empregadas tenha crescido, houve expressiva alta do número de pedidos de seguro-desemprego. E, embora faça sentido, à medida que a taxa de pessoas desocupadas caiu e foi-se chegando a algo mais próximo do pleno emprego, era esperado que diminuísse o volume de recursos saindo do Tesouro para pagamento desses benefícios, considerando a dinâmica própria do sistema. Isto não aconteceu.

Entre parte dos economistas criou-se um consenso de que há grande volatilidade no mercado de trabalho, sobretudo nos setores em que aumentou o número de postos - notadamente de perfil salarial mais baixo e de mão de obra menos qualificada. Trabalhadores com mais poder de barganha por salários e que têm à disposição maior oferta de vagas mudam mais de emprego.

Por isso, tem-se entendido ser necessário, para ajudar a diminuição do ritmo de crescimento do endividamento do Tesouro, bem como para a redução das pressões salariais sobre a inflação, um freio à extrema mobilidade de trabalhadores entre ocupações. 

Veja-se também que o setor de menor renda tem apresentado crescimentos em seus ganhos acima das médias dos de maiores salários, forçando uma distribuição de renda via mercado de trabalho.

Para diminuir a mobilidade entre empregos nas camadas de mais baixa renda, o Governo apresentou projeto que ampliava o tempo necessário de contribuição para a retirada de benefícios trabalhistas. A ideia é criar um incentivo à permanência mais longa em cada vaga e diminuir a volatilidade da mão de obra, diminuindo as transferências de renda via Tesouro para os benefícios e as pressões no nível de salários.

É importante deixar claro que a teoria econômica dita clássica analisa o mercado de trabalho em um embate entre a oferta e a demanda por ocupações em determinado ponto do nível de salários. 

À medida em que sobe o nível dos vencimentos, se os empresários têm menos opção de repasse dos aumentos, se não conseguem transformá-lo em preços mais elevados, a tendência é que contratem menos. Dessa forma, o salário é a variável de ajuste entre demanda e oferta de mão de obra. Por isso, a maior mobilidade de trabalhadores é desejável, pois permite o equilíbrio eficiente no mercado.

Este modelo tem, obviamente, alguns fundamentos importantes. O primeiro: trabalhadores não recebem seguro desemprego ou outras rendas que o salário, o que faz com que este seja a variável de ajuste. 

Segundo, e fundamental em toda a teoria clássica, que salários sejam perfeitamente flexíveis, ou seja, que diminuam ou aumentem, mudando a oferta e demanda por trabalho. 

Terceiro e também importante, que a natureza do trabalho seja indistinta - tanto faz ser garçom ou sapateiro - ou que a capacidade de trabalhadores desempenharem diferentes ocupações seja total - o pedreiro hoje vira cozinheiro amanhã pela simples necessidade.

No mundo real, no entanto, há legislação que mantém algum tipo de rede de segurança para o desemprego e/ou que impede que salários sejam rebaixados. Esta, pela teoria, atrapalha o ajuste perfeito da oferta e demanda de trabalho causando desequilíbrio - que pode se traduzir em inflação ou desemprego. 

Há também alguma diferenciação entre as vagas ofertadas, mesmo em empregos de baixa qualificação. 

Há, ainda, no modelo, a suposição de que mudanças no nível dos salários são imediatamente percebidas por trabalhadores, que respondem entrando ou saindo do mercado. Obviamente, existe aqui a inobservância de uma cultura a respeito do valor do trabalho e também das condições econômicas que cercam o mercado. É uma enorme simplificação portanto. 

Em crises, quando sobe o desemprego, diminuições do nível de salário dificilmente provocam a debandada dos trabalhadores de seus postos, como predestina o mecanismo de ajuste do modelo.

A incapacidade de reduzir salários, no entanto, pode se tornar um impulso a preços de bens e serviços produzidos - e aqui as empresas repassariam os aumentos de salário ao valor daquilo que produzem, mantendo os níveis da oferta de vagas - ou pode ser uma ferramenta para a diminuição da demanda por mão de obra, ainda que os salários mantenham elevada a oferta, o que gera desemprego. 

Há contradições e simplificações nesta explicação sobre a dinâmica econômica e sobre o mercado para oferta e demanda de trabalho. Há empresas que são menos intensivas em mão de obra, logo a variável salário é menos importante na oferta de vagas ou na composição de preços. 

O curioso é que a matriz do ajuste econômico em curso é a teoria majoritária econômica que é de raiz neoclássica. Então, é entendido o viés pró-equilíbrio autônomo pela correção do sistema de preços - no caso, com a mudança do benefício trabalhista. Porém, ele é também contraditório, pois seu objetivo principal embora totalmente inserido na ortodoxia - o aperto recessivo de contas - tem como um dos propósitos limitar a mobilidade no mercado de trabalho, que pelo modelo clássico, para que o mercado seja eficiente, precisa ser máxima.

Entre a realidade e o modelo vai grande distância. O que está determinando qual medida usar é a necessidade do equilibrar as contas. E por isso, a mobilidade do mercado, para azar do modelo e dos trabalhadores, precisará ser contida. 

Wednesday 11 March 2015

Legalistas

O Governo Federal tentou e conseguiu uma conciliação a respeito do valor de correção da tabela do IR. Em linhas gerais, essa mudança significa compensar a perda inflacionária dos valores que correspondem aos limites das faixas que dividem contribuintes entre quem paga mais ou menos imposto. Ou seja, é simplesmente fazer com que os valores que dizem quem paga quanto de imposto subam um pouco de forma a considerar que reais na última revisão da tabela valem menos hoje. Já sabia-se que haveria ranger de dentes e birra. 
Semana passada, por ocasião da apresentação de parte do pacote de ajuste fiscal por tantos clamado, o senador Renan Calheiros devolveu a medida provisória que continha parte do arrocho por considerar que aquele conjunto de ações não poderia ser contemplado via medida provisória.
Questão de forma ou de adequação ao rito vigente, fato é, que dois senadores do PSDB, Serra e Aécio, foram à tribuna congratular Renan Calheiros pelo pito. Os jornalões noticiaram que Renan devolveu o texto ao Governo porque ele seria um dos denunciados no tufão da Lava Jato pelo procurador Rodrigo Janot. De fato, Renan e o presidente da câmara Eduardo Cunha foram denunciados.
Se cumpriu-se o rito normal e característico ao devolver a papelada, os dois senadores pelo PSDB passaram recibo de ultra legalistas que congratulam quem defende o próprio mandato com o interesse público do saneamento das contas.
Nenhum dos dois senadores têm qualquer sugestão para o ajuste fiscal pretendido e tão cobrado - embora fosse uma das pedras fundamentais da campanha do PSDB à presidência no ano passado e o conselheiro econômico do candidato Aécio Neves, Armínio Fraga, seu mais ardoroso defensor.
Nesta semana, a nova discussão reuniu a proposta aparentemente flexibilizada do Governo Federal de um ajuste na tabela do IR com faixas diferenciadas de acordo com a renda. De modo simples, quem ganha menos teria um reajuste maior - de 6,5% - e quem ganha mais, um menor de 4,5%. Com isso, o andar de baixo dos eleitores contribuiria menos com o esforço fiscal e o andar de cima com um pouco mais.
Isto porque ao reajustar mais intensamente a tabela para os que ganham menos, o sarrafo das alíquotas do IR fica um pouco mais alto, ou seja, permite a quem é mais pobre manter um pouco mais da renda que possui, pagando menos imposto. Para os mais afortunados pela meritocracia o sarrafo sobe menos, o que faria com que mais pagassem imposto.
Aécio, crítico do ajuste em curso - embora não no que Armínio propunha ano passado - informava que não aceitaria a correção da tabela em duas partes. Dessa forma, o único ajuste seria o de 6,5% para todos, que faria com que a arrecadação do Governo Federal caísse mais e se penalizassem igualmente andar de baixo e de cima.
Vale dizer que, anteriormente, a presidente fora Dilma foi contra o reajuste total da tabela pela alíquota de 6,5% - ela preferia o de 4,5% de modo a capturar mais impostos. O motivo é que, com o ajuste fiscal em curso, deverá haver uma queda real na renda esperada com a tributação. Em tempos de aperto de contas, parece o pior caminho. E é.
Felizmente, a proposta de escalonamento - duas correções diferentes tendo em vista a renda - foi publicada via medida provisória. 
Do episódio, no entanto, depreendem-se duas lições. Uma: opor é mais importante que propor. Duas: estelionato eleitoral não é só para quem ganha a eleição. 

Tuesday 10 March 2015

Inflação e Selic - 101

O noticiário tem reverberado as previsões do mercado financeiro a respeito do comportamento de juros e inflação mais à frente. As notícias parecem nada alvissareiras. O difícil é compreender de onde vêm e o que significam.

Em primeiro, de onde vêm as previsões do mercado? Em geral, de pessoas que lidam com o mercado financeiro cotidianamente - agentes que por exemplo estudam o comportamento da economia, bancos, grupos de investimento, empresários, gestores. 

Dois, por que o futuro não parece animador? A principal razão é que, nas consultas às pessoas que lidam diretamente com o mercado, o sentimento é o de que os que têm recursos sobrando cobrarão maiores retornos para emprestar dinheiro aos que não têm. E isso tem sido demonstrado nas previsões de juros futuros. Há ainda o aumento continuado das previsões da inflação deste ano por estes agentes.

O que as taxas de juro futuro têm a ver com inflação?

Há duas respostas, uma óbvia: os agentes que emprestam dinheiro querem retornos acima da inflação esperada. Isto faz com que com o aumento dos preços sobem os retornos esperados, logo os juros. E há outra não óbvia: o aumento dos juros tem poder sobre a inflação.

Como isto funciona?

O Banco Central é quem tem capacidade de emitir moeda no Brasil e controlar o seu emprego na medida em que controla a principal taxa de empréstimos no País, a que regula parte do financiamento público. E, avaliando os retornos cobrados pelos agentes do dinheiro emprestado, estipula nova taxa. Isto funciona através de um mecanismo simples porém sofisticado.

Governos precisam de recursos para suas despesas. Parte deles vêm dos impostos pagos. Outra parte pode ser obtida junto aos agentes privados que têm dinheiro disponível. Quando precisa se capitalizar, o Tesouro emite títulos que são comprados por agentes econômicos variados - fundos de pensão como a PREVI, bancos comerciais, empresas. Como prêmio pela compra, fixa-se uma taxa que valoriza o dinheiro pago e que compensará o emprestador, quando for feito o desconto do título, após o período estipulado de capitalização. Ou seja, ao comprar um título, o vendedor se compromete com uma rentabilidade futura do dinheiro empregado na compra .

Há vários tipos de títulos, alguns são remunerados pela taxa SELIC. Mas essa indiretamente ou diretamente influencia todas as outras.

As mudanças de remuneração na SELIC, o aumento ou queda da taxa de juros, acontecem toda vez que o Banco Central considera que o valor pago não é adequado aos objetivos que têm quando negocia os títulos.

Estes propósitos variam. Se o Bacen crê que a inflação está acima do ponto que deveria, de acordo com as metas que estabelece para economia e com as observações que faz, normalmente, ele anuncia um aumento da SELIC. Este aumento tem por objetivo diminuir o volume de dinheiro disponível no mercado, enfraquecendo a inflação. Funciona de maneira simples. 

Ao aumentar os juros, os prêmios dos títulos oferecidos pelo Tesouro para financiamento do Governo se tornam mais rentáveis. Assim, haverá mais investidores que consideram uma boa opção a compra de títulos e haverá um incentivo maior a troca de moeda na mão do público - dos agentes - por estes títulos. 

Na prática, haverá também menor quantidade de moeda na economia como um todo. Haverá menos valores para investimentos - por exemplo abrir um negócio - para o consumo - o dinheiro vira título e só retorna ao agente após o período de capitalização - e também para empréstimos. Desta forma, o aumento da Selic enxuga a quantidade de dinheiro disponível na economia, desaquecendo a atividade. O efeito esperado é a diminuição da inflação - menos gente consumindo, menores investimentos, logo, menor pressão da demanda por bens e serviços o que, dada a mesma oferta, permite a desaceleração dos preços. 

Ao mesmo tempo, porém, os aumentos da taxa SELIC implicam em maior endividamento - ou compromissamento - do Tesouro com os agentes que trocaram seu dinheiro por títulos. Eles deverão receber maiores retornos pelo empréstimo nos juros fixados. 

Isto depende também dos tempos de retorno dos títulos. Os de prazo mais curto - que são em grande parte o perfil da dívida pública nacional - têm impacto mais profundo das contas, pois toda vez que a SELIC é reajustada parte substancial deles é trocada por títulos mais novos e mais caros, o que aumenta o endividamento de curto prazo do Tesouro.

Efeitos da SELIC:

Se a SELIC é reduzida, o contrário acontece. Os agentes têm incentivos menores a reterem títulos e tendem a procurar outras atividades mais rentáveis para serem empreendidas com os recursos que têm disponíveis. 

Dessa forma, ao contrário do que se parece sugerir, endividamento não causa inflação. Há uma conjunção específica de fatores que levam ao aumento ou diminuição da inflação. Para que aconteça uma aceleração dos preços é necessário que o aumento do gasto público, ou do endividamento, incida diretamente sobre a capacidade da economia de demandar bens e serviços e que o aumento não incentive o crescimento da oferta, quando os preços tenderiam a variar menos ou não variar. 

Ou seja, para que haja inflação derivada do aumento do endividamento é necessário que a economia já esteja em um ponto de capacidade máxima da oferta de bens e serviços. Economistas, em geral, falam sobre pleno emprego como uma condição fundamental para que o aumento do gasto público implique em inflação, isto porque é preciso algum emprego de mão de obra para a produção dos bens ou a prestação dos serviços. Se há escassez de mão de obra, pela interação entre oferta e demanda, os salários podem subir, fazendo com que os preços sejam reajustados para acompanhar o seu aumento.

As críticas sobre a extensão das medidas tomadas pelo Governo Dilma no primeiro mandato normalmente ficam neste ponto, ou seja, de que ao desonerar e promover um aumento da demanda através do crescimento do gasto público, incentivou-se ou alimentou-se o processo inflacionário. É uma forma de analisar e entender a inflação recente, embora não seja a única. Há trabalhos acadêmicos que defendem que o câmbio é o que mais afeta a inflação brasileira nos últimos anos, por exemplo.

Outras ferramentas do BC:

A taxa SELIC não é, no entanto, a única ferramenta do Banco Central no controle inflacionário e da economia. 

Os bancos comerciais e públicos têm por lei um valor mínimo que deixam depositado junto ao BC, além das reservas que mantêm consigo. Juntas, essas limitam a quantidade recursos que podem ser emprestados.

Bancos, de forma simples, emprestam o dinheiro que recolhem junto a quem poupa, cobrando taxas maiores para empréstimos do que as que remuneram o dinheiro recolhido com os poupadores. Desta forma, eles não criam valor, mas geram spread, que é a diferença dos juros que remuneram a quem empresta e os juros que cobra de quem pega recursos emprestados junto a eles. E desse embate - e de outras operações - geram sua receita.

O Compulsório:

Além disso, os bancos, além de manterem certa quantidade de dinheiro em suas contas, mantêm ainda uma reserva obrigatória de dinheiro no BC. Este valor é conhecido como Depósito Compulsório. Como os bancos dependem de recursos depositados para sua atividade - e tecnicamente têm limites para o total de empréstimos que podem fazer - um aumento no Compulsório, diminui a quantidade total de dinheiro disponível para operações, o que diminui o volume de empréstimos, reduzindo o ritmo de expansão da atividade econômica, já que o crescimento e abertura de novos negócios, bem como o financiamento dos já existentes, fica mais restrito.

O redesconto:

Por último, o BC detém uma outra ferramenta conhecida como redesconto. A ideia é simples. Em uma economia de mercado, o Banco Central funciona como um emprestador de última instância, isto é, quando os bancos comerciais e públicos precisam de dinheiro, podem recorrer a ele para obter esses recursos. Na prática, o dia a dia dos bancos é emprestar dinheiro a um valor mais alto do que aquele que usa para remunerar o que pega emprestado de correntistas e do mercado. 

No fim de cada dia os balanços dessa movimentação, ou seja a diferença entre o que foi emprestado e o que está de fato com o banco, têm de atender objetivos da instituição e legais. Quando isto não acontece, a opção é pedir dinheiro ao Banco Central ou a outro bancos. O BC empresta os valores a fim de que o balanço do banco feche corretamente, evitando problemas em série de compromissos que a instituição devedora tem com outras instituições. 

Como controla os valores pelo qual pode ser feita essa operação, o Banco Central pode incentivar mais liquidez ou menos na economia, bastando para isso alterar os valores de redesconto. 

Todas essas três ferramentas - SELIC, Compulsório e Redesconto - são usadas de acordo com os objetivos do BC e com sua visão da condução da política monetária: metas de inflação e outras medidas afetadas como o valor do câmbio. Todas têm impactos sobre a atividade econômica e nas decisões realizadas por todos os agentes econômicos. E reverberam através do sistema financeiro de forma continua - dos empréstimos consignados, ao financiamento de um imóvel, ou ao valor dos juros do cheque especial.

Não são ideias simples e embora o BC possa simplesmente arbitrar os valores para suas ferramentas da forma que entende ser melhor, ele está atento ao mercado e às necessidades de liquidez e da atividade econômica. O FED - BC dos EUA - tem objetivo declarado de manter a inflação em patamares estabelecidos e defender o emprego. O BC brasileiro é comprometido claramente com metas inflacionárias. Cabe a ele conduzir a política monetária de forma a respeitar os limites da atividade econômica e da dinâmica de preços pretendida. Não é obviamente um trabalho fácil, como mostram os 20 anos subsequentes à adoção do real.

Monday 9 February 2015

Segunda

Às nove horas da manhã de um dia-feira que nunca seria qualquer, alguém já fez um selfie. Em poucos minutos mais um pai, mãe, filho, irmão ou nada disso, volta à terra, do pó ao pó, já se disse,  alguém já comeu uma tapioca, um marido anuncia que vai à esquina comprar cigarros - e se ele não voltar, que coisa linda, que coisa boa - um amante se esgueira pela porta de saída - para dentro ou para fora - uma moça da difícil vida fácil termina o último trabalho ou ingressa no primeiro sono, um velho se imobiliza na porta de um banco - que abre às 10 - uma dona de casa sova um pedaço de patinho na vã esperança de fazê-lo contrafilé - e há tantas metáforas aqui - um ônibus já derrapou na curva, tirou fino de uma moto e em seu interior, a moça que veio lá do interior - do milho - logo após a saída da rodoviária, já se intimamente acostuma à ideia de cidade grande: são rápidos os novos costumes, violentos, nada sorrateiros. A saudade já aperta no peito também.
Um pouco depois das nove, salvos serão aqueles que creem, e talvez aqueles que não creem decidam passar a fazê-lo: um padre retira a batina, uma freira prende os cabelos, a galinha na granja nem sonha seu destino, quem sabe a encruzilhada de uma rua da grande cidade, quem sabe acompanhada pela batata doce - que não sonha, sabemos - na mesa do triatleta, quem sabe morrer de velhice naquele lugar eternamente ensolarado, cheio de semelhantes, todos brancos, disputando o espaço, esperando a próxima refeição.
Às nove horas da manhã, um incesto, uma bravata, uma história, um taxista, um estudante, nossos ossos, cada baleiro em cada esquina, os consertadores de saltos e sapatos desconfortáveis do centro da cidade, os cocainômanos, os alcoólatras, os independentes químicos, mas dependentes de afagos, de carinhos, de adjetivos, todos nós, retorcidos e comprimidos, sem espaço, sem tempo, sem saber se acreditamos em livre arbítrio, se cremos na cigana, sem ideia se podemos continuar a gastar, se devemos poupar, quem sabe estudar, dormir mais um pouco e quem sabe sonhar, esperamos a luz no próximo momento, a sensação de conforto em meio ao desequilíbrio.
As poças da chuva na rua da Carioca, sabemos são poças da chuva de ontem. Nós, que acordamos hoje e sabemos quem fomos ontem, não conseguimos imaginar o que seremos amanhã - talvez não importe. Esperar, sem se dar conta, sem angústia, equilibrando-se para pegar o ônibus, saltar a poça, conduzir a bicicleta, evitar o banho do guarda chuva alheio, desejando café com bolo na padaria charmosa da atendente que rói unha e deixa ver a alça do sutiã - e é bege - é uma arte que não dominamos. 
São difíceis as segundas-feiras, mas são nossas íntimas amigas e velhas conhecidas, do primeiro choro ao dia em terra haverá de comer estes e outros olhos, que tentam, diariamente, nestas segundas-feiras, encontrar conforto no habitual, entusiasmos no que não é do ritual, beleza no roto e já fatigado.
E ainda há verá mais segundas-feiras.

Tuesday 5 August 2014

Quando eu era pequeno, aprendi, na escola, com os professores de história e geografia do colégio público em que ingressei aos 10 anos e saí aos 17, que o Brasil errou ao preferir o modelo rodoviário ao ferroviário. 

Aos 10 anos, fazia pouco sentido. Minha mãe tinha um carro velho - comprado de um tio também velho - e trânsito era coisa que, no Rio, só se via em feriadão nas estradas, ou, na então menos célebre avenida Brasil, que em dias de chuva, ou, no horário do rush fazia-se de a distância mais longa entre dois pontos. 

As desculpas dos professores para preferirem trem e metrô a ônibus e carro eram obviamente derivadas da posição de esquerda festiva que podia então existir e da qual eu, obviamente, não podia partilhar - pobre comunista é complexo, um que pegue trem então, mais ainda. Desde os 6 anos de idade, morara em bairro servido por trens e ônibus e, naquele tempo, as composições que faziam longos e demorados trajetos entre localidades de nomes duplos, que o poder público sequer lembrava que existiam, circulavam com portas abertas, mendigos e suas necessidades biológicas, animais e, também, eram conhecidas por serem muitas vezes o destino final dos inimigos da ordem pública da virada 80-90, os surfistas ferroviários - os bicheiros, então, já ocupavam um ponto mais abaixo nesta escala da cadeia alimentar e sustentavam escolas de samba, políticos, policiais, clubes de futebol, centros comunitários, associações de moradores, pequenos negócios, além da enorme lista de pessoas que, sem humildade qualquer e sem o menor medo, pegava algum na caixinha do bicho.

Além disso, os professores bolcheviques do colégio público de então listavam como vantagens do sistema de trens e metrôs os menores gastos com manutenção - óbvios no estado físico que agravava os emocionais de cada um de nós, os locomovidos a solavancos do subúrbio longínquo ao centro do Rio - e a maior velocidade de deslocamento - dado que não havia possibilidade de engarrafamentos, já que a cancela do trem fecha para sua passagem com prioridade a todos os outros meios de transporte, não o contrário. No caso do metrô, que demoraria ainda mais 15 anos para chegar às redondezas da casa onde morei e do qual seria usuário contumaz, porém involuntário, cancelas e paradas sequer existiriam. Aparentemente, o que faz hoje o Metro-Rio ao anunciar interrupções no tráfego é pegadinha. 

A contar ainda, havia, é claro, um menor número de acidentes: colisões entre trens eram impossibilidades estatísticas na Flumitrens de então, as entre carros e trens, ocorrências causadas por distrações fatais ou problemas mecânicos em latas velhas como a que permitia a nós, mais uma família suburbana dona de uma Brasília com idade suficiente para votar - e esta atividade era significativa naqueles idos anos do retorno democrático e de campanha para o Darcy Ribeiro e contra o Moreira - passeios à praia, nas folgas dos fins de semana em que não era necessário fazer os salários escorregadios comportarem os voláteis preços das compras do mês - inflação daquele tipo deixa marcas nada saudáveis e pouco saudosas.

Hoje, não pego mais trem. Também não tenho carro. Mas estavam errados aqueles mestres vermelhos do colégio público - todo professor de história é meio comuna. Metrô tem engarrafamento, trens colidem, seus usuários são chicoteados pelos seguranças e, se não há mais os surfistas de trem, animais nos vagões, nem mendigos e suas necessidades, há as cantorias das religiões de pobre, há o biscoito globo vendido clandestinamente - vejo vantagem - e há composições que, se não andam com a porta aberta, quando lotadas no verão, são ferramentas de perda de peso compulsórias. Que saudade da Brasília. 

Thursday 31 July 2014

Era inútil.

Em um aniversário longínquo, onde a adolescência que não era ainda presente, impulsionando frequentes crises de raiva, de incompreensão e a explosão de uma derme via hormônios, éramos uma família, na verdadeira acepção da palavra, destroçada. Convalescia no hospital mais um parente que logo faria o mesmo caminho de tantos outros e nos faria também reprisar antigos itinerários - da casa do quintal que diminuiu durante os anos que separavam a infância daquela fase futura - que todos esperariam que fosse, aliás, uma fase - para o lugar para onde ultimamente tanto convergíamos, e onde também sabia eu que o consolo seria familiar: o misto quente de pão de forma e a coca cola na birosca ao lado da loja de coroa de flores.
Despedaçada, desfolhada, perdendo galhos, estava cada vez mais aquela árvore da genealogia de pessoas pobres, naquela cidade onde ainda não se avizinhavam grandes eventos, que ficava no país, que no passado fora o do futuro e que no presente, naquela manhã, entre a insistente chuva fina e nosso mau temperamento, era assolado por políticos em campanha, como aquele que o homem de pele escura, advogado, antes polícia militar, agora deitado naquela caixa de madeira, solteirão de longos anos, apoiou.
O Albuquerque, esse era o nome do candidato a vereador no justo período ao final da abertura lenta, segura e gradual preconizada pelo último general a galgar o mais alto assento da república cheia de árvores e pessoas dizendo adeus, como dizia Quintana, era um colega desses que os solteiros às vezes têm e que nós, os do tronco principal daquele sobrenome, formado por tantas mulheres que choravam a partida de mais um - e que ainda chorariam mais - não conhecíamos.
Entre os sorrisos e os mimos que lotavam o fusca cor de goiabada dietética do homem que aquele grupo de suburbanos velava naquela manhã cinza, havia, naquela iniciativa de apoio desinteressado, prêmios por um ano de exploração de outros cafundós da zona norte da cidade: a vaga promessa de coisas que melhorariam - e talvez um cargo no gabinete almejado. 
As bolas de futebol, as bonecas e as espadas de plástico que acompanhavam carrinhos de mesmo material, eram todas imitações possíveis de comportamento adulto a que as crianças daquela região, todas pobres, umas pretas, outras não, que respiravam com dificuldade após as enchentes das águas daquele ano, tinham direito, bastando por isso, na troca de sorrisos, levar para casa um santinho, um panfleto, dos muitos que aliás lotavam o carro que descansaria em relativa paz, como meu tio, em um lugar que evitaríamos, mas que não poderíamos deixar de ir.
A pobreza, ainda que não miserável, daquela região onde se compravam galinhas vivas para almoço de domingo, e onde, ainda vez por outra, animais apareciam mortos no caminho entre a casa do pomar, que também diminuía ano a ano, e a escola que logo seria abandonada, não era explícita. Pobres mesmo eram os que não tinham casa, eram os que em durante a semana tocavam a campainha pedindo alguma comida que sobrasse. Nunca entendi porque não apareciam aos sábados e domingos, quando meu avô então cozinhava frangos, mocotó, língua e todas as carnes em promoção nos açougues do bairro vizinho. 
Nas encostas ainda pouco exploradas do morro atrás daquelas paredes brancas que nos separavam da vizinhança, residiriam, em poucos anos, muitos outros, que como esses, bateriam ao portão pouco antes do almoço dos dias de escola para reservar o possível das sobras da refeição que nós, um pouco mais afortunados, podíamos fazer. 
Naquela entrada do mais recente passeio ao local que teimava a vida em nos obrigar a frequentar não compareceu o Albuquerque. Meu tio iria à terra em caixa de madeira de cor mais clara que sua pele, em dia de céu mais escuro que a camisa de linho que nele fora vestida, cor semelhante a de nossa roupas, naquele último trajeto.
O Albuquerque não foi ao enterro, já disse. Nem nunca mais apareceu em nossa casa. As bolas de plástico e os santinhos ficaram acumulados em um canto do quintal, perto do fusca que em breve seria vendido a um outro solteirão do subúrbio que também jamais veríamos e, meses após, seriam levados por uma chuva torrencial na cidade em que fenômeno natural tornava-se tragédia e assunto em futuras campanhas políticas de outros homens que eu jamais veria a não ser em jornal como aqueles que usávamos para enxugar o fusca depois das lavagens de sábado quando meu tio ainda era vivo e solteiro.
Então, começou aquela chuva. 
Não era como a que pingava no enterro de mais um homem de meia idade, pele parda e levemente careca, mas de bigode e barba sempre bem cofiados e risada que terminava em assovio, como aquele que fazem os gatos em sua asma. Mas era como aquela que tinha chovido antes, lavando as roupas, móveis, geladeiras e casas e seus interiores por sua força. 
Aos quase sete anos, não sabia da inutilidade dos afetos construídos com pedaços de plástico que me permitiam imitar a vida que era então tão distante e que não parecia poder ser algum dia a minha. Só via, no fundo do quintal de ladrilho e de parede de chapisco, as bolas, bonecas, carrinhos, naquelas sacolas de supermercado, encostados, à espera de mais um dia de campanha que ali, então, já não mais havia. 
Quando a água subiu, barrenta, como cor de toddy, e sujou o muro branco que dividia aquela casa de todas as outras da rua, e que fazia daquela casa o meu mundo, entendi. Era inútil, o tempo, as bolas, os carrinhos, o fusca, tudo era inútil. 
Vi quando os carrinhos passaram boiando em suas embalagens plásticas e quando as bolas de futebol foram tragadas pelo ralo que os vizinhos abriam na rua embaixo da chuva, com a enchente na cintura, à base de enxada, pá, gritos de bota as crianças dentro de casa e desespero. Ali, enquanto minha avó cobria os espelhos e relampejava, enquanto as casas mais baixas da rua se inundavam, enquanto os outros meninos saíam com água pela cintura, quando o trem da estação já não passava, eu sabia com certeza de que nenhuma das bolas, dos brinquedinhos, iam adiantar e que ninguém se importava. 
Fiquei parado com os pés na água barrenta, vi uma cobra d'água e esperei ali, sentado, na porta dos fundos daquela casa alta, naquela rua de bairro de nome composto, que a chuva se fosse. Demorou muito, mas mesmo molhado, e chance de gripar, fiquei ali esperando. O tempo para o alto de meus 6 anos e meio era imensurável. 
O sol, muito tempo depois saiu, a enchente baixou e apareceram as paredes coloridas de marrom nescau, o jardim com o abacateiro caído, com o espinafre cheio de lama e sapos para todo lado. A água não invadiu a casa, no entanto, apenas destruiu o passatempo do avô que teimava em não se aposentar, e poderia ter afogado os galos e galinhas daquele quintal, se tivesse chovido um ano antes, quando ele ainda os tinha.
Como veio, a chuva, ela se foi. Como tudo naquelas horas de nós, de torcida, nós - aquelas pessoas pobres daquele bairro esquecido com uma igreja, um botequim, meus seis amigos de escola, bandidos que corriam sobre as lajes e telhados e, em que novamente as ruas ficariam lamacentas, intransitáveis, e, ainda, onde depois o barro endureceria, viraria poeira, que nos faria chorar sem tristeza quando os carros passassem, empoeirando os lençóis nas cordas, as camisas de colégio público, a televisão da sala - a chuva e, seu futuro, o barro, éramos a confirmação do que já conhecíamos, todos, há uma vida de pobreza nos mais velhos, há seis anos e meio de dia após dia até ali para mim. Chuva, barro, olhos empoeirados, nós pobres éramos íntimos. Nos encontraríamos com certeza, embora não pensássemos nisso, em breve. Eu sabia, todos sabíamos, e enquanto as casas ficassem de pé, elas, se vivas, seriam testemunhas. Não sendo, não podia dizer que também sabiam da inutilidade - mas seriam palcos de nosso espetáculo pobre.
O Albuquerque, porém, aquele, eu soube depois, ele não foi eleito.